O CANAL E O EVEREST

O homem e a natureza.
Desde o primórdio dos tempos, existe entre eles um misto entre admiração e medo. Respeito e desafio.
Como mandatário destas terras, o homem busca na natureza encontrar seus próprios limites. Alguns a desafiam, buscando a superação como um embate cruel e incondicional. Outros buscam o equilíbrio e a convivência, evitando os confrontos para alcançar seus objetivos.
Não importa a forma, a Travessia a Nado do Canal da Mancha e a Escalada do Monte Everest são dois destes desafios. Não há como dizer que um seja mais difícil que o outro: eles são diferentes. E instigam seus oponentes cada um à sua maneira.

Vamos agora conhecer a história e as particularidades de cada um deles.
Comecemos pelo Canal.

Palco de inúmeras guerras sangrentas, o Canal da Mancha já foi, no século XIX, um sério obstáculo a que Napoleão invadisse seu país arquiinimigo, a Inglaterra. Conta a história que, em uma de suas reuniões de estratégia de guerra, Napoleão foi questionado por seus oficiais, que não entendiam como superariam os ingleses, com a evidente desvantagem tática de serem provenientes do estreito de Dover. Sua resposta foi categórica:
- Trata-se de um mero fosso a ser pulado.
Subestimado por Napoleão - que, ao final, perdeu a guerra - ou enaltecido pelos homens de bem, a travessia do Canal da Mancha foi feita pela primeira vez no ano de 1875, pelo capitão Matthew Webb, ex-integrante da navegação comercial inglesa.

Já o Everest foi conquistado somente no ano de 1953, também após inúmeras tentativas sem sucesso. Sir Edmund Hillary, um apicultor neozelandês, acompanhado pelo sherpa Tenzing Norgay (com esse nomezinho suspeito, vai saber o que rolou lá em cima) chegam ao topo do mundo, amparados por uma mega-operação composta por outros 350 colaboradores.

Vejamos alguns números relativos a ambas as aventuras:
O Canal da Mancha, em seus mais de 130 anos de história, foi cruzado por cerca de 900 nadadores, provenientes de 53 países.
Já a escalada do Everest é mais recente: tem um pouco mais de 50 anos de história e foram mais de 1200 os alpinistas bem sucedidos.

A primeira mulher a atravessar o Canal foi Gertrude Ederle em 1926, portanto 50 anos após Webb. Já no Everest, a japonesa Junko Tabei, o fez em já em 1975 - apenas 22 anos após a primeira conquista masculina.

A travessia do Canal sempre foi feita sem o uso de roupas ou instrumentos especiais - faz parte das regras do jogo. E as frias temperaturas representam seus maiores desafios. A escalada do Everest é regularmente conduzida com o uso de máscaras de oxigênio e outros aparatos. Foi somente em agosto de 1980 que o italiano Reinhold Messner o fez sem aparelhos de respiração.

Devido às baixas temperaturas da água, no Canal da Mancha, não há tubarões. Igualmente, o Abominável Homem das Neves - ou Yeti - nunca foi avistado no Tibet.

As fortes correntezas do Canal, inicialmente perpendiculares e, ao final, contra o nadador, desviam-no lateralmente, transformando o menor caminho entre dois pontos numa curva senoidal, aumentando proporcionalmente as distâncias percorridas. Muitos nadadores não conseguem vencê-las e, eternamente paralelos à costa, desistem de suas tentativas. Já no Everest as nevascas, os ventos fortes e as avalanches representam grandes dificultadores ou mesmo o fim do caminho para muitos - seja por opção do alpinista, que decide retornar, ou da natureza, que o soterra.

Independentemente do tamanho ou da natureza do desafio, os bem sucedidos, sejam eles nadadores ou alpinistas, apresentam certas crenças em comum: a consciência de sua absoluta pequeneza perante a natureza e a certeza de que as vitórias só são possíveis quando ela - a natureza - nos permite atingi-las.
Os sentimentos mais comuns nestes eventos? Seguramente, admiração e reverência.
Admiração pela dimensão do desafio. Impossível sair desta experiência igual ao que se entrou.
Eu estive lá, na praia de Shakespeare, olhando para o nada, e lançando-me em sua direção, acreditando na dimensão finita do Canal, mesmo que não visível a olho nu naquele momento. O pensamento é um só: "Eu vou chegar lá!"
Igualmente posso imaginar o que representa estar o alpinista ao sopé da maior montanha, que também tem para si: "Eu vou chegar lá!"
Reverência pela demonstração de humildade perante a toda poderosa mãe natureza. Em ambas as situações, o atleta ali presente é um intruso, não foi convidado e não é razão importante para influenciar qualquer mudança de rumo da natureza. Esta se comporta como se não estivéssemos ali.

Então, no Canal, se a água fria for insuportável, saia antes que a hipotermia o mate.
Ou no Everest, se o frio lhe congelar os pés a ponto de arriscar-se a perder os dedos, tome as medidas corretivas necessárias o quanto antes. Lembre-se: a natureza não o convidou para estar ali. Por isso, você lhe deve todo o respeito.

E, se, em qualquer um destes desafios, for necessário desistir, isto não representa nem o menor sinal de covardia. Pelo contrário, é um sinal de coragem e superioridade. Coragem pela difícil tomada de decisão de reverter planos nada simples - quanto menos baratos. Superioridade pela oportunidade que se desenha de retomar o desafio num futuro próximo, possivelmente sob condições mais favoráveis. Isto é o que eu chamo de usar a racionalidade a favor do homem.

Em resumo, não há desafio maior ou menor. Ambos são imensos e, o que mais se espera dos mesmos, que sejam proporcionalmente gratificantes. Sobre a parte do desafio que me coube - a Travessia do Canal - posso afirmar que não só foi gratificante, como também enobrecedor.

É em sua pequeneza que o homem se aproxima de Deus.

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© - Percival Milani