TRAVESSIA SHERLOCK HOLMES DE NATAÇÃO

Vocês sabem que, com a idade, nossas funções cognitivas vão, pouco a pouco, perdendo sua efetividade. Nos últimos anos, devo ter participado de mais de sessenta travessias e não lembro de detalhes da grande maioria delas. É uma pena, pois cada uma tem sua história particular.
Apesar do meu problema de DNA - Data de Nascimento Antiga - algumas marcam presença e permanecem em nossas memórias, seja pelas vitórias conquistadas, seja pelas derrotas amargadas. Dentre as mais recentes, confesso que poucas me intrigaram tanto quanto a Travessia de Ubatuba de 2003.

Essa Travessia é uma das mais tradicionais do litoral paulista - neste ano estava em sua 34ª edição. É uma prova atraente para quem está em forma e bem preparado. É um martírio para os que não conseguiram se preparar, pois é a mais longa do circuito atual do Campeonato Paulista, com quase dez quilômetros de extensão.

Dizem que é muito boa para a memória também, por que depois da prova você fica doído por mais alguns dias e vive se lembrando do domingão que passou… O trajeto é sui generis, pois não implica em circuitos repetitivos, quer dizer, não é daquelas provas em que o nadador tem que dar duas, três - ou mais - voltas para concluir a prova. Trata-se de um formato que parece um grande quadrilátero ligeiramente aberto, onde dois dos lados são realmente grandes, chegando a mais de três quilômetros cada e o nadador facilmente pode perder a referência de onde está a bóia.

Bem, lá estávamos nós, campeonato em curso, pequena diferença de pontos entre eu e o Luiz. O que estava em jogo era apenas o terceiro lugar do campeonato, visto que os dois primeiros eram difíceis de alcançar. Eu tinha 41 anos, nadava pela Atlantis, com a touca verde claro. Ele, com 44, pela 4Fit e sua inconfundível touca "amarelo-cheguei". Por causa da cor, sempre brincávamos dizendo que, em caso de necessidade, seria mais fácil achar os corpos dos atletas da 4Fit. Nada como um humorzinho negro para aliviar as tensões antes da competição...

Desnecessário dizer que eu achava que estava relativamente bem preparado para a Travessia, visto que estaria fazendo o Canal da Mancha dali a três meses. Meus últimos resultados me davam ligeira vantagem de pontos sobre o Luiz. E ele, obviamente, queria tirar a diferença.

Acontece que esta prova acabou por entrar para a minha história, por tudo de errado que aconteceu na mesma. Em primeiro lugar, me alimentei em excesso antes da largada - um litro de maltodextrina - que, para piorar as coisas, foi antecipada. Minha carga digestiva estava aumentada, não tinha força nos braços. Em pleno alto-mar, ventava muito, havia muitas ondas, não consegui encaixar um bom estilo e sofri demais. Errei o trajeto e passei muito longe do barco de alimentação e resolvi não reabastecer. Também foi difícil encontrar as bóias ao longo do trajeto e perdi muito tempo ao contorná-las.

Meu irmão, que deveria estar me acompanhando em seu caiaque, se perdeu com a força dos ventos. Em vez de ele estar ao meu lado para estudar meu ritmo e estilo, eu é que me preocupava em encontrá-lo na agitada imensidão do mar. Eu estava muito descontente com meu rendimento e queria que a prova terminasse logo. Para tornar as coisas ainda piores, não vi o Luiz durante a prova, apenas uma touca da cor da dele algumas centenas de metros à minha frente que eu não conseguia alcançar. Em verdade, no meio de tantas ondas, não dava pra ver quase ninguém!

Todos os ingredientes para um grande fracasso estavam lá. Ao terminar a prova, fui desabafar com o Agnaldo e buscar orientações para evitar problemas como esses no futuro. Afinal, o Canal da Mancha estava chegando e eu não conseguia mostrar bom desempenho em mar agitado...

Durante nossa conversa, deu vontade de aliviar a pressão osmótica, ou, em jargão popular, fazer xixi. Pedi licença ao Agnaldo, entrei no mar e resolvi o menor dos problemas daquele dia. Saí da água e continuei conversando com o Agnaldo, que sempre tem um bom conselho para provas como essa.

Depois de nosso bate-papo, o encontro inevitável com o Luiz. Estava radiante, dizendo aos quatro ventos que havia ganhado de mim e que aquele era o seu dia, que eu fiquei pra trás, etc.

Resignado com tudo o que ocorrera, respondi-lhe:

- É verdade, Luiz, eu via a sua touca amarela e não consegui chegar nem perto de você. Esta prova foi muito ruim pra mim. Eu quero é esquecer este dia!
Ao falar isso, ele tirou a mão direita que ele mantinha escondida atrás das costas e me mostrou a touca que usara na prova. Era azul.
- Azul??? Mas, como pode? perguntei.
- É, Milani - ele sempre me chamava pelo sobrenome - você sabe como é. Para ganhar, vale tudo. E deu certo, por que eu te vi saindo da água...

A coisa é simples assim: enquanto o resultado oficial não sai, os nadadores sabem quando ganharam dos outros ficando plantados próximo ao funil de chegada e vendo os outros saindo da água. Ele me viu, mas eu não o vi sair do mar.
Quarenta e quatro anos nas costas e ele havia trocado de cor de touca para me enganar durante a prova! Difícil de acreditar numa coisa dessas. O nosso campeonato não paga prêmios em dinheiro (para nossa categoria), não presta homenagens especiais, não distribui jantares com a Daniela Cicarelli, nada! Havia, sim, um troféu bonitinho em jogo - Ubatuba sempre capricha na premiação - e nós o estávamos disputando, pois naquela situação, ele seria o terceiro com direito a troféu e podium e eu, o quarto, com direito a resignar-me e ficar quietinho em meu canto. A pior colocação é o quarto lugar, especialmente quando se chega coladinho no terceiro...

Troféu de Ubatuba

Eu não quis saber de mais nada. O quadro estava claro e não me restavam dúvidas. Nem fiquei próximo ao podium no momento da premiação. O Luiz estava lá, com bandeira, camiseta da academia e o filho pequeno para comemorar. Na fila do gargarejo e com máquina fotográfica na mão.

Foi quando o juiz de prova anunciou nos alto-falantes:
- Em terceiro lugar, Percival Milani, da Academia Atlantis.
Eu estava a mais de cem metros dali. Ouvi meu nome, mas não acreditei. O primeiro pensamento foi:
- Será que o Luiz chegou em segundo e eu em terceiro? Impossível. Desclassificaram alguém? Pouco provável.
Nem deu tempo de me aproximar da premiação e o Agnaldo pegou o troféu em meu lugar. Ao chegar por ali, percebi o Luiz correndo como um louco atrás do árbitro da prova, pedindo uma explicação. Ele dizia:
- Eu vi o Percival saindo da água. Eu cheguei antes dele! Não pode ser.
O árbitro, escolado dos anos de travessias, foi até a relação de chegada, onde os números dos atletas estão anotados por ordem e ratificou a classificação.
Depois de alguns minutos de reflexão e contente da vida, entendi o que acontecera. Um mistério digno de Arthur Conan Doyle, resolvido por Sherlock Holmes no último capítulo:

(Se você gosta de resolver mistérios, este é o momento para deixar fluir sua veia investigativa.)

Após terminar a travessia, durante minha conversa com o Agnaldo, dei uma escapada estratégica e rápida até o mar, conforme já relatado anteriormente. Neste meio tempo, o Luiz chegou e passou pelo Agnaldo - eu não estava lá. Quando voltei e novamente fui conversar com o Agnaldo, fui avistado saindo do mar pelo Luiz, que deu sua vitória como certa.
Sherlock teria adorado resolver este caso.

Morais da história:
1. Não cante vitória antes do tempo.
2. Competitividade não tem idade. Pode até ser positiva, mas quando é extrapolada, pode caracterizar imaturidade.

Talvez alguns de vocês queiram sugerir uma terceira:
3. "Quem ri por último ri melhor!",
mas confesso que não foi o caso. De fato, fiz questão de ser solidário e não rir, apesar da imensa alegria do momento. Sei que o mundo dá voltas. Hoje aconteceu com ele, amanhã pode ser comigo.

Questão de bom senso.
Bom senso humano.
Bom senso elementar... meu caro Watson.

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© - Percival Milani