TRANSFORMANDO UM SONHO EM REALIDADE

por Adherbal Treidler de Oliveira

Antes de atravessar o Canal da Mancha, li cada detalhe do livro "A Travessia do Canal da Mancha", escrito pelo meu amigo Percival Milani - Canal da Mancha #09. Além do livro, naveguei por cada seção deste site e, ao me deparar com os testemunhos dos brasileiros que haviam conseguido atravessar o Canal, confesso que desejei muito ver a minha história sendo publicada neste seleto Hall da Fama.

Comecei a nadar com 04 anos de idade e, com cerca de 11 anos, identificaram em mim as características de um nadador fundista. Tal seleção me levou na direção de treinos com grandes metragens, exigindo de mim uma dedicação média de oito horas diárias. Os resultados vieram. Estabeleci alguns recordes brasileiros nas provas de fundo (800 e 1500m), mas com 18 anos não conseguia mais treinar. Meu psicológico não suportava mais as longas e fatigantes horas de treinamento.
Com isso, acabei me afastado de qualquer atividade física por mais de 24 anos. Vieram os problemas de saúde e o sobrepeso (quase 100kg). Em maio de 2012, com a ajuda de amigos e das minhas filhas (Bruna, Gabriela, Júlia e Manuela), decidi voltar a nadar, mas com o foco principal no bem-estar e na saúde.
No final do ano de 2012, depois de passar o ano todo nadando provas de velocidade, no máximo 200m, aventurei-me numa travessia de 5km em Rio das Ostras. O resultado foi surpreendente. Ganhei na minha categoria e voltei a me sentir bem nadando uma prova de longa distância. Mais do que isso, veio a paixão de nadar no mar. Eu simplesmente nadava admirando os peixes, as algas, as ondulações e tudo mais que uma natação, sem os limites de uma borda, proporciona aos nadadores.
No ano seguinte, como já havia feito a maior travessia do circuito estadual, resolvi fazer a maior travessia regular do Brasil, a Travessia 14 Bis com os seus 24Km. Foi incrível, desafiador e uma experiência inesquecível. Neste momento, conheci duas pessoas muito especiais. Percival Milani e Marcelo Teixeira. Eu não tinha a noção de que estava ao lado de um Canal da Mancha e de um aspirante ao Canal, respectivamente.
Despois de ter concluído a Travessia 14Bis, pensei: Eu fiz a maior travessia do Estado do Rio, fiz também a maior do Brasil. E agora, o que faço? Foi quando veio a ideia de fazer a Travessia mais temida e conhecida como " o Everest da Maratona Aquática", a travessia do Canal da Mancha.

Assim que decidi fazer a travessia do Canal, comecei a ler, simplesmente, TUDO sobre este desafio. Logo percebi que se tratava de uma travessia complexa e com um histórico de oito vítimas fatais. Dentre elas a da brasileira e experiente nadadora Renata Agondi no ano de 1988.
Por meio das leituras, constatei que existiam duas associações com os objetivos principais de regular e ratificar as travessias do Canal da Mancha (CSA e CSPF). Optei pela CSA pelo fato de se estabelecer um agendamento com um prazo menor e por ter tido mais facilidade de me comunicar, via e-mail, com os pilotos dos barcos escolta.

Feito isso, estudei cada detalhe do regulamento, certificando-me dos passos a serem seguidos, das documentações necessárias e dos prazos a serem cumpridos. Na sequência, segui rumo à primeira etapa. Precisava contratar um bom piloto (barco escolta) o mais rápido possível. Nada aconteceria se não houvesse esta contratação. Foram dois meses de tensão, mas em janeiro de 2014 consegui fechar com o piloto Stuart Gleeson, da CSA, o meu nado para a janela de 05 a 11 de setembro de 2015 (o nado pode ocorrer em qualquer dia desta janela).
Esta demora foi decorrente dos critérios que estabeleci como mandatórios:
1) Nadar nos meses de agosto ou setembro (em função da temperatura da água);
2) Atravessar numa janela de maré morta (neap tide)
3) Ser o nadador #1 da janela (são quatro nadadores por janela); e
4) O piloto deveria proporcionar uma fácil comunicação por e-mail.

Esta é uma etapa importante, pois a travessia começa neste momento. Escolhas erradas nesta fase inicial podem se transformar em obstáculos intransponíveis no grande dia.
Com o piloto contratado, a janela estabelecida e os contatos com a CSA executados, comecei a focar nos treinos, na composição de uma equipe multidisciplinar, no patrocínio necessário e na logística a ser aplicada, escolhendo a cidade para executar os treinos finais e a rota para se chegar nela.
Durante o ano de 2014, dediquei-me a estas questões. Pesquisei, conversei e estudei bastante. Foram realizadas diversas leituras de artigos científicos para entender o comportamento do corpo humano exposto à agua fria por longo tempo. Precisava ter as respostas para determinados questionamentos: Como ocorreria a famosa hipotermia? Existiam outros riscos? Começa-se nadando forte para espantar o frio? Como se evitar câimbras? Entre outros...

Precisava conhecer estes detalhes para estabelecer uma estratégia de treinamento.
Em janeiro de 2015, apresentei o Projeto ao técnico Renato Ribeiro que mergulhou de cabeça desde o primeiro momento. Mas ainda faltavam os apoios e o patrocínio. Quanto aos apoios, alguns profissionais renomados foram se incorporando ao Projeto. Claudia Arakaki ficou encarregada pela área da psicologia esportiva, Eneida Reis pela área médica, Tatiana Ferreira como nutricionista e a Physio Center pela fisioterapia. Também obtive o apoio da Powerade na hidratação, Sport Clube Mackenzie com a piscina, Equipe Navegantes com a preparação dentro e fora da água e da Corujas Filmes com a filmagem e edição.
Quanto ao patrocínio, extremamente difícil de se obter no Brasil, fui apresentado ao Marcos Arzua, que prontamente topou e se incorporou à equipe, viabilizando os meios estabelecidos no planejamento do Projeto.

Neste momento, o projeto deixou de ser somente meu e passou a ser de uma equipe fantástica e multidisciplinar. Lembro-me de uma das frases que escutei da equipe: "Adherbal, preocupe-se apenas em treinar". E assim foi feito. Juntamente com toda a equipe, focamos totalmente na preparação, tendo cada um as suas atribuições e responsabilidades.
A preparação foi realizada em 600 dias e nos últimos 08 meses, foram mais de 2.500km nadados, 10 treinos longos com apoio de barco (4 a 9 horas de duração) e algumas travessias como a 14Bis (24Km), Ilha do Mel (23Km) e Leme ao Pontal (35km), essenciais para se testar o ritmo de braçada e o plano alimentar (de suma importância numa travessia longa).

Foram necessários muitos testes no plano alimentar. Eu sentia muito enjoo nos primeiros treinos longos, causando-me rejeição a qualquer tipo de alimentação ou hidratação, fato que gerava grande preocupação em toda a equipe. Foi neste contexto que a médica do Projeto, Eneida Reis, assumiu um papel fundamental ao buscar nas literaturas as soluções pertinentes, implementando as calorias necessárias que se mostraram efetivas por meio das medições de glicose e de temperatura que foram realizadas durante os referidos treinos. Desta forma, o plano alimentar foi sendo aprimorado até chegar na versão que foi aplicada no grande dia.
Os treinos longos foram importantes para se mapear o meu comportamento durante as elevadas horas de nado. Com as amostragens, passamos a ter um ritmo de braçada médio e, constatamos que havia uma queda de rendimento com 5 horas de natação, mas que a performance voltava a melhorar depois de 6 horas de nado. Estes dados foram fundamentais para se estabelecer a estratégia da travessia do Canal da Mancha.
Os inúmeros gráficos das travessias realizadas nos últimos cinco anos, disponíveis na página da CSA, foram minunciosamente analisados com o objetivo de se entender o comportamento do Canal (sentido e a intensidade das correntes, trechos mais difíceis, etc...).

Ao se chegar na Inglaterra, na cidade de Folkestone, treinei por sete dias com o objetivo de me adaptar à temperatura e às características do Canal. Foi uma espera tensa, pois as instabilidades das condições climáticas da região são muito grandes. O Canal é de fato um grande desafio que requer uma preparação planejada e responsável.
Quanto a minha travessia, no lado inglês do Canal, peguei um mar muito ondulado. A sensação era a de se estar dentro de um liquidificador. E assim segui até a metade do percurso. O meio do Canal foi aonde tudo aconteceu. Eu tinha um histórico de queda de rendimento com 5 horas que deveria acontecer justamente no meio do Canal. Lá, tive que me superar para não deixar o meu ritmo cair e assim transpor as ondulações com vagas de até 3 metros, as correntes fortes, os ventos de 90Km/h, a água fria (dois graus mais baixo em relação ao início do nado) e o tráfego marítimo intenso. É um momento em que o nadador tem que estar muito atento. No meio do Canal, era tanta ondulação/corrente/vento que desorientei por duas vezes.
No lado francês, o vento diminuiu, mas as correntes que levam o nadador novamente para o meio do Canal são extremamente intensas. Sofri muito neste trecho - muita dor nos braços e no pescoço. Na verdade, para se atravessar o Canal da Mancha, o nadador tem que vencer as adversidades que surgem a todo o momento.
Vendo a costa francesa, restando cerca de 2000 metros, a corrente ainda era muito forte. Estava exausto e mal conseguia abrir os meus olhos. Meu nado não tinha mais rolamento e sabia que teria que me manter forte e focado para terminar a travessia.

Nas minhas pesquisas, constatei que nas travessias fatais, alguns nadadores faleceram com menos de 3km do fim. Esta informação me manteve concentrado e consciente do risco. Precisava continuar firme até chegar na praia. E assim foi feito.
Ao chegar nas pedras, na costa natural da praia de Cap Gris-Nez, e levantar os dois braços, pude escutar a buzina do barco escolta (Sea Leopard). A travessia havia sido concluída com sucesso. Foi um momento especial que ficará eternizado na minha memória. Ao retornar para o barco, fui recebido pela minha namorada e médica Eneida Reis, pelo meu técnico Renato Ribeiro e pelos meus amigos Alexandre Mello e Marcos Ferreira. Foi muita alegria, choro e emoção de todos que estavam a bordo do Sea Leopard e de muitos que acompanhavam do Brasil.

Meu tempo de travessia foi de 8h e 49min, alcançando marcas expressivas como: novo recorde sul-americano de 34 anos e brasileiro de 22 anos, primeiro militar brasileiro e a melhor marca mundial da temporada de 2015 e dos últimos cinco anos pela CSA.
Fruto deste feito, recebi da Channel Swimming Association a "Gold Medal" (entregue pela CSA ao nadador mais rápido da temporada), tornando-me o único nadador das Américas a possuir tal medalha.
Um resultado que demonstra a capacidade do ser humano em se superar, alcançando objetivos que são considerados por muitos como impossíveis. Basta fé, dedicação, persistência e planejamento. Uma marca digna da equipe de brasileiros que se formou. Profissionais dedicados, competentes que se comprometeram com o objetivo de atravessar o Canal da Mancha e de representar o Brasil da melhor maneira possível.

Volle Est Posse!

Adherbal de Oliveira

© - Percival Milani