Aconteceu no ano de 1958. Após três tentativas fracassadas de Abílio Couto e outras de alguns baianos no "canal inglês", Abílio viajou para a Europa para tentar finalmente atravessar o Canal da Mancha. Ele estava mais experiente, já havia vencido todas as provas no Brasil e algumas estrangeiras naquele ano, porém o Canal era algo muito maior, tanto que Abílio vendeu seu carro, alguns pertences e ainda contou com uma colaboração de João Havelange, que sempre o incentivava.
Neste ano inclusive tinha acontecido um acidente com o avião batizado de "Aeronca", quando Abílio pilotava em direção ao litoral de São Paulo e o avião caiu no mar. Depois de nadar durante horas ele encontrou um pedaço de terra, onde viveu seus dias de Robinson Crusoé, ficando três dias nu e se alimentando de coco, até chegar o resgate. Depois de dificuldades como esta, ele estava seguro que atravessaria qualquer Mancha do mundo.
Abílio chegou alguns dias antes do lendário 10 de Agosto, mas como as condições climáticas não estavam boas, teve que esperar durante alguns dias até a Channel Swimming Association autorizar a sua travessia. Capitão Wood ligou para ele no hotel e disse: "Tem que ser hoje, vamos para a Mancha". A tripulação saiu de Eastern Docks à meia noite e foi em direção à França, onde chegaram às 2:30 da manhã. Estavam na praia de Cap Gris Nez e o barco estava fazendo as últimas manutenções para a travessia.
Não fazia muito frio, os jornais ingleses apontavam como um dos dias mais quentes do ano e a expectativa era grande pois nenhum nadador do mundo havia vencido a Mancha naquele ano. Abílio estava se aquecendo na praia e, para espanto dos ingleses, dispensou naquela travessia a mão de óleo, usada para aquecer o corpo na água gelada. A maré estava moderada e os fotógrafos soltaram o primeiro flash.
Eram 3:40 da manhã quando Abílio iniciou a travessia, só Deus sabe o que ele estava pensando naquele momento. Apesar de ainda hoje ser fatal, o Canal naquela época era um verdadeiro mistério. O número de nadadores bem sucedidos não chegava a vinte antes da tentativa de meu avô. O relatório anotou que às 4:50 o Abílio estava nadando em um ritmo muito forte, e fez uma parada para tomar chocolate quente. A esta altura calculo que ele já devia ter nadado cerca de 5 quilômetros.
Às 5:20 passou o barco alemão Dutch Coster, fazendo sinal que iria continuar depois do nadador. Às 6:20 da manhã entrou um vento do sudeste do Canal, bem frio, daqueles de gelar a espinha, Abílio já devia estar com 14 quilômetros de nado. Às 8:05 o ritmo ainda estava bom, mas a neblina estava se desenvolvendo cada vez mais, sendo possível a visão a olho nu de 1km aproximadamente. Cinco minutos depois a maré jogou o barco do observador e da tripulação para o lado, Abílio começava a nadar com certa dificuldade.
Às 8:40 da manhã, com 5 horas de nado ( Devia estar com 20 quilômetros percorridos) a neblina ficou pesada, não se conseguia ver mais do que 100 metros à frente, cada novo pedaço de água que aparecia era um mistério, não se sabia o que poderia encontrar a cada braçada.
Às 9:15 a neblina se dispersou mas voltou com força novamente às 9:40, fazendo com que o barco que acompanhava o Abílio tivesse que soar a buzina constantemente para que pudesse ser localizado por outros barcos para evitar acidentes no meio do Canal.
Às 10:20 o S.S. Hulst um barco de grande porte quase colidiu com o barco da tripulação da travessia, quando estavam perto os flashes por lâmpadas fizeram a comunicação e deu tempo de desviar. O Hulst emitiu sinais de luz agradecendo a manobra.
Às 11:10 a neblina finalmente se foi, o barco Prince Albert passou ao lado de Abílio. Às 11:23 o barco de apoio fez contato com este barco e foi informado que estavam a menos de quatro quilômetros para chegar à costa Inglesa.do farol de South Goodwin.
Calcularam então que mais 9 quilômetros e a travessia estaria completa. Neste ponto Abílio já tinha nadado por 7 horas e 43 minutos sendo clara a oportunidade de bater o recorde que, na época, era de 10 horas e 50 minutos. A imprensa inglesa foi avisada.
Os barcos Atlantic, Setúbal, Louis e Antartic Ocean e Salonika passaram buzinando às 11:40 da manhã. Uma inversão de maré às 12:30 fez com que o progresso de Abílio fosse interrompido e levado um pouco para trás. Nesta altura ele estava a 3 quilômetros da chegada. A 1:30 da tarde Abílio estava combatendo com a maré que tentava levá-lo para trás e de forma bem lenta ia avançando para a praia.
A luta continuava às 3:30, colocando em dúvida a possibilidade de continuar a travessia ou não. A maré estava muito forte. O relatório oficial marca que às 4:25 depois de um "stupendous" esforço Abílio bateu a mão nas pedras de St. Margareth´s Bay e andou com dificuldade para a praia. Minutos depois ele recuperou o fôlego e atendeu aos repórteres e emissoras de televisão.
A Channel Swimming Association anotou por fim em seu relatório: "It was a fine swim by a very gallant gentleman".
Dados da Travessia:
Dia: 10 de Agosto de 1958
Tempo:12 hrs 45 min
Média de 47 braçadas por minuto
Abílio se alimentou de hora em hora com sopa, chá e chocolate quente
Nome da embarcação: Victor
Piloto: Capt. L. Hutchinson
Temperatura da água: 14 °C
Tripulação: Capt. L. Hutchinson , J.U. Wood ( Observador), Maciel, Talbot, Christie e Harris ( Equipe), M.F. Burns ( Fisioterapeuta).
Registro da travessia: Fotos, Troféu de prata ofertado pela CSA, Certificado oficial e relatório oficial.
Arquivo de países que deram a notícia no dia seguinte: Brasil, EUA, Inglaterra, França e Egito.
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