BREVE HISTÓRICO DA TRAVESSIA DO CANAL

O Canal da Mancha tem sido motivo de orgulho para todos os que o cruzaram. Vamos apresentar aqui um breve retrospecto de como essa aventura começou.
Voltemos à década de 1870. A Inglaterra vivia sua época Vitoriana e dispunha de um poderio marítimo invejável no mundo. O comércio internacional era preponderantemente conduzido por via marítima. O herói de nossa história, de nome Matthew Webb, trabalhava numa companhia de navegação comercial inglesa. Era um simples marinheiro, natural de Shropshire, Inglaterra, havendo aprendido a nadar no rio Severn, próximo à sua casa. Tinha um biotipo forte e meio atarracado.

Acostumado a desafios, em seu trabalho Webb ajudou a organizar esforços de resgate de cargas, desenrosco de hélices propulsoras, etc. que exigiam dele grande habilidade natatória no mar além de desenvolver em si, um sentimento voluntário para tais tarefas. Em 1873, em uma de suas viagens, um marinheiro do navio Rússia cai no mar durante uma forte tempestade. Instintivamente, Webb joga-se ao mar para salvá-lo, em pleno Atlântico Norte. Apesar de não conseguir realizar o salvamento, com muito esforço num mar agitado, Webb conseguiu ser resgatado. Na Inglaterra, foi condecorado por seu ato de bravura e passa a ser chamado informalmente de "Capitão".

No ano anterior, a primeira tentativa séria - ou, pelo menos, amplamente divulgada - de cruzar o Canal havia sido feita pelo inglês J.B.Johnson. Não durou mais que 75 minutos e ele já estava de volta ao barco tremendo como uma vara verde. Webb acompanhava essa e outras histórias de longe e, aos poucos, foi se convencendo de que poderia ser ele o primeiro a fazê-lo. O orgulho britânico corria em suas veias. Afinal, o Canal era Inglês (the English Channel)!

J.B.Johnson lança-se ao mar do píer de Dover em 1872.

Era uma época de grandes evoluções no ramo de navegação marítima. Em dois anos, mais de 900 marinheiros haviam morrido em naufrágios, o que indicava a fragilidade técnica das embarcações. A Inglaterra investia em normas e regulamentações para o setor. Os Estados Unidos começavam a despontar como potência mundial.
Foi em 1875 que se ouviu falar, pela primeira vez na Inglaterra, de um americano chamado Paul Boyton que inventara uma roupa salva-vidas que foi anunciada como a grande solução de segurança para tantos naufrágios recentes. E Boyton estava decidido a provar sua eficiência, fazendo uma travessia da Inglaterra para a França. Sua roupa era, no mínimo, muito curiosa, pois além de garantir a flutuação necessária a seu usuário e um par de remos para impulsão, também lhe fornecia um compartimento para levar charutos, sanduíches e livros que poderiam ser confortavelmente consumidos enquanto se esperava pelo resgate. Havia até mesmo uma vela de tecido encaixada no sapato para aproveitar o vento.

Boyton em seu traje salva-vidas, no mínimo, curioso.

Era o orgulho britânico contra o capitalismo americano. Aquela prometia ser uma boa briga...
A primeira tentativa de Boyton, no dia 10 de abril de 1875, foi frustrada - as correntezas e o vento do Canal dificilmente o levariam até a França. Mas ele não desistiu e decidiu realizar a travessia no sentido contrário, da França para a Inglaterra - sabidamente mais facilitada - e no final de maio conseguiu sua proeza. Mal havia secado a tinta das inúmeras manchetes dos jornais e Webb inicia seu treinamento para a Travessia a nado do Canal. A mesma deveria acontecer até o final de Agosto, sob o risco de a temperatura da água tornar-se baixa demais para ser suportada por um ser humano.

Sua primeira tentativa foi no dia 10 de agosto. Pressionado por seus nervos e cansado de esperar pelo dia ideal, Webb iniciou sua primeira tentativa, mas o mar virou rapidamente. Ondas altas e ventos fortes inviabilizaram sua travessia após quase sete horas de esforço. Mas Webb não desistiu e no dia 23 de agosto do mesmo ano, conseguiu seu feito após 21 horas e 45 minutos. Movido a café quente, cerveja, bacon, óleo de fígado de bacalhau e, nos quilômetros finais, brandy. A descrição dos últimos momentos da Travessia nos jornais da época é comovente e emociona a qualquer um que conheça a epopéia desta Travessia:

"... a doze braçadas por minuto, suas pernas apenas balançavam, as mãos estavam frouxas e espalmadas na água. Não havia força alguma em seu estilo. Sua face, meio acinzentada pelo frio, parecia a de um cadáver enquanto braços e pernas continuavam a se mexer. O barco dava voltas ao seu redor para não ser carregado pelo forte vento. George Toms, da equipe no barco, gritava para encorajá-lo; seu amigo Baker jogou-se na água para acompanhá-lo e dar-lhe apoio. A terra estava finalmente chegando. Faltavam ainda duzentas jardas. Vários barcos se acumulavam ao seu redor - todos o aplaudiam. Uma multidão se acumulava junto à praia. Apenas mais cem jardas. No navio do correio, os homens cantavam Rule Britannia. George Toms chorava copiosamente no barco. A água ficou mais rasa. Ele está quase lá. Os remos já tocavam a areia. Quase lá. Até que, finalmente, veio a terra firme. Exausto, delirando, a face coberta de sal, um olho cego pelas ondas, o corpo rígido e besuntado como um toco de vela, Webb ficou de pé, cambaleou e caiu, quase sem vida, nos braços de seus amigos."

O orgulho britânico havia vencido. Sem instrumentos e sem roupas especiais.
Estava lançada a pedra fundamental da mais difícil e almejada competição de águas abertas do mundo.
Seguramente por essa razão é que a Travessia é feita até os dias de hoje sem nenhum tipo de roupa especial que ajude o nadador a flutuar ou que o isole da gelidez da água.
É só você, a touca, a sunga e seus óculos. E uma grande dose de determinação, distribuída estrategicamente entre seu cérebro e seu coração.
Essa é a receita para o sucesso no Canal da Mancha.
E na vida também.

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© - Percival Milani