VALORES

Estão em falta em nosso mundo atual. Alguns têm. Outros nem imaginam do que se trata. Os valores de um indivíduo ou de uma sociedade são bens intangíveis que ditam seus costumes, seu modo de agir e de reagir. Não são contabilizados nos balanços das empresas nem mesmo no PIB nacional. Mas têm influência direta na qualidade de vida de todos nós.
Os valores pessoais representam, sem muito rigor científico, uma combinação entre fatores herdados geneticamente e outros absorvidos já em contato com a família ou mesmo com a sociedade. Isto equivale a dizer que, numa família que valoriza o trabalho, a honestidade e o respeito ao próximo, grandes são as chances que esses valores sejam perenizados entre seus descendentes (em outras palavras, provavelmente nenhum político dali despontará). Já na sociedade imersa no crime, os indivíduos se acostumarão com roubos, com o medo e a morte. Seu conjunto de valores foi assim formado e este é o filtro através do qual enxergam suas vidas.

A questão que se coloca aqui é: a sociedade, como um todo, está evoluindo ou involuindo em sua escala de valores? Pelo lado da entropia, conceito físico que dita que a energia útil do universo está em contínua redução, pode-se dizer que o caos aumenta a cada dia. Os valores, como se pudessem assim ser influenciados, acabam pressionados para baixo, em franca decadência.
Não precisa ir muito longe para entender o conceito. Até poucos anos atrás, nenhum de nós imaginava ser possível mobilizar uma sociedade - em sua maioria economicamente desprovida - para contribuir com milhões de reais numa única noite para decidir o destino de um Zé Ninguém, que nada significa em sua vida, num jogo de faz-de-conta puramente artificial chamado de Big Brother. A nossa sociedade, vazia de objetivos e carente de ídolos, entrou nessa e vai entrar em tantas outras ainda pela frente. Definitivamente, os valores da massa são muito distintos dos valores individuais. (Minha nonna já dizia isto enquanto preparava seu delicioso nhoque caseiro!)

Percebem-se, por outro lado, alguns movimentos, mesmo que tímidos, no sentido da maior consciência coletiva e do bem estar da humanidade. O maior exemplo disso é a movimentação - sabidamente lenta - no sentido de se combater o aquecimento global. O lado ruim da história é que isso só é feito por uma questão de sobrevivência da espécie, não pela conscientização sobre o que é certo e o que é errado. Isto nos deixa claro que a evolução de valores acaba se dando muito por obrigatoriedade e raramente, por opção.
Outro exemplo: o motorista americano não avança sobre a faixa pintada na rua porque sabe que será punido se assim o fizer. No Brasil, se você parar num semáforo AMARELO, será duramente criticado - xingado até - por seus pares. Os valores americanos, mesmo que impostos por severa legislação, acabam por ser freqüentemente praticados. Mesmo obrigatórios, estes valores ajudam a construir uma nação. E, como num condicionamento físico, valores precisam de treino, de freqüência, de aprendizado com o próximo, de crescimento.

Engana-se quem pensa que só devem ser louvados os valores espontâneos, os não cobertos (e punidos) pela lei. Talvez por essa razão seja tão fácil entender por que os esforços da igreja sejam tão pouco eficazes no comando de uma sociedade: espera-se que todos cultivem os valores do bem ao próximo, pela única motivação de que Deus assim o quer. Perdoem-me a heresia, mas falta sistematização numa sociedade assim orientada: se fizer o bem, ganha um tijolinho na casinha do céu; se fizer o mal, Deus perdoa e está tudo resolvido. O cinza predomina numa sociedade que precisa mais de preto no branco.
Mas por que toda essa falação sobre valores? Qual a relação com o tema que me inspira, ou seja, com a Travessia do Canal da Mancha?
Costumo dividir minha carreira aquática em a.C. e d.C.: Antes do Canal e depois do Canal. No esporte, especialmente em desafios de grande monta, o homem sai de sua rotina e passa a experimentar situações próximas de seus limites corporal e psicológico. Ele precisa desenvolver um conjunto de valores que lhe acompanharão durante a empreitada. Se não o fizer, suas chances serão reduzidas, e muito. Os principais valores são simples e de graça - como tudo o que há de melhor na vida - estão bem na nossa frente, mas nem sempre são avistados ou entendidos facilmente.
Vou citar apenas alguns, a título de exemplo:

1. No dia de minha travessia, poucos minutos antes de lançar-me à água, um nadador mexicano, de nome Jorge Ricarday, muito mais experiente que eu em travessias internacionais, me disse:
- Aproveite cada braçada desta travessia, pois se trata de uma chance única. Talvez você não tenha uma segunda chance igual a essa.
Eu estava muito preocupado se resistiria a todas as adversidades que poderia encontrar pela frente: vento, ondas, hipotermia, enjôos, correntezas, seres marinhos, etc. e cai esse mexicano em minha vida para dizer que "A felicidade não é o fim do caminho; ela está ao longo dele." Está aí um valor precioso, que pode mudar a vida de qualquer um.

2. Um nadador que se prepara para uma Travessia deste porte leva uma vida espartana por um ou dois anos antes da tentativa. Ele nada diariamente distâncias crescentes, enfrenta vento e ondas, ambienta-se em águas geladas, "puxa ferro" buscando maior reforço muscular, muda radicalmente seus hábitos alimentares para aperfeiçoar a transferência energética em seus músculos. Tudo é feito em prol da preparação impecável de uma máquina, como um navio que vai atravessar um estreito de água. No entanto, por mais paradoxal que pareça, o que leva um nadador de travessias até o outro lado é sua CABEÇA - sua mente positivista. Foi ela que recebeu a maior preparação. Foi ela que foi exercitada à exaustão. Foi ela que cresceu em seus valores de confiança, coragem e determinação. E esses valores são os que nos conduzem a superar os obstáculos da travessia, assim como na vida. Se desejar, pode chamar isso tudo de ATITUDE. Quem não tem, não imagina o que está perdendo. Quem tem, sabe que é pouco e quer mais.

3. Os valores religiosos também têm sua importância aqui. São um bem de raiz. Eles provêm da família, daqueles valores primários que foram cultivados ao longo de sua vida e da visão que construímos - sempre muito particular - sobre religião. Posso afirmar que, antes e durante a Travessia, pedi muito a Deus para que me ajudasse a cumpri-la. Mas, se você não acredita nestes valores, não seja hipócrita de incomodá-Lo com pedidos interesseiros e passageiros em suas empreitadas. Vire-se sozinho e não reclame - nem blasfeme - depois.

4. O bom humor ajuda a encarar a aridez dos desafios, além de fazer bem à saúde. Confesso que não fui um exemplo de bom humor durante as mais de dez horas que durou minha Travessia. Meus companheiros do barco devem ter sofrido um bocado comigo. Lembro-me que estava sisudo o tempo todo, mas quase ao final, a cerca de oitocentos metros da costa francesa, tive a iluminação de conversar com o piloto e dizer-lhe:
- Estou cansado. Acho que vou desistir.
Acreditem, aquilo era uma piada. A melhor que pude imaginar naquelas condições. Meu interlocutor inglês percebeu tratar-se de uma piada. Até esboçou um sorriso. Eu, por esgotamento físico, não conseguia rir, chorar, demonstrar qualquer sentimento. Só me restava nadar até o final. A lição foi que, com bom humor, o fardo fica sempre mais leve.

5. A persistência é outro valor essencial. Normalmente vinculada à determinação, significa não desistir onde a maioria desiste. Mas a decisão de continuidade deve estar fundamentada pela razão ou pelo sentimento de que aquilo é o melhor a fazer. Sem convicção, a persistência transforma-se em teimosia desmedida, que deixa de ser benéfica e desejável.
Já imaginaram fazer a Travessia do Canal sem persistência ou determinação?
Portanto, caro leitor, persista. O fim da crônica está próximo.

6. Um comportamento reto ajuda a construir, gradualmente, um clima de tranqüilidade e estabilidade emocional, seja em atletas em momentos de grande demanda ou não. Vamos chamar este valor de INTEGRIDADE. Trata-se de uma condicionante positiva, que muito ajuda a enfrentar os grandes desafios, não importando sua natureza.
Não é meu objetivo afirmar que somente os santos e íntegros cruzam o Canal da Mancha. Pelo contrário, conheço histórias de verdadeiros crápulas (no conceito relativo da palavra) que já cruzaram o Canal e aposto como tantos outros de mesma índole ainda o farão. Mas é importante enfatizar que uma mente em paz consigo mesma tem a calma e a segurança como aliadas em seus projetos.
Baseado nestes últimos valores, ouso duvidar que certos personagens políticos brasileiros conseguiriam a proeza de atravessar o Canal. O caso mais ligado a essa realidade é do inigualável (ainda bem que só tem um) Paulo Maluf. Sua conexão com o Canal da Mancha é indiscutível. Não que já tenha participado de alguma tentativa na região. Em verdade, sua menção deve-se à grande travessia das fronteiras brasileiras (ajudado por doleiros), para colocar seu rico dinheirinho - de fato, NOSSO rico dinheirinho - nas Ilhas Jersey, paraíso fiscal bem no meio do Canal da Mancha.
Diz a lenda política que, numa dessas noites mal dormidas, a esposa do Maluf, vira-se para ele e diz:
- Benzinho, vamos fazer uma sacanagem?
Ao que ele prontamente responde:
- Vamos. Onde é que eu assino?

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© - Percival Milani