AVENTURA? NÃO. EVOLUÇÃO!

Não poderia deixar de comentar a recente tragédia ocorrida com nosso compatriota Vitor Negrete, vítima da montanha mais alta do mundo e notícia estampada em todos os nossos jornais na semana que passou. Como vocês bem sabem, ele fez uma tentativa de chegar ao cume do Everest sem o uso de cilindros de oxigênio. Pelo que consta nos jornais, ele foi bem sucedido - chegou ao topo dos 8848 metros, o ponto mais alto do mundo - mas faleceu em seu retorno ao acampamento 3, a 8300 metros de altitude. O Sherpa com quem se comunicava pelo rádio o socorreu no meio do caminho, mas não foi o suficiente para salvá-lo.

As razões da morte são desconhecidas e trabalhadas hoje somente no campo das hipóteses. Muitos teorizarão sobre o tema. Especialistas serão chamados a opinar. A fisiologia humana será dissecada em simples palavras aos leigos que acompanham as supérfluas notícias nos jornais. Haverá tantos mais detalhes quanto maior for o interesse dos leitores pela história. Afinal, nessas horas, tudo se resume aos números de tiragem dos jornais e revistas e os resultados econômicos dela advindos.

Relegando agora o lado perverso do capitalismo a um segundo plano, acredito que a sociedade deva tirar proveito dessa situação para amadurecer os conceitos humanos e motivacionais que levam os esportistas a suas conquistas. Ou, no jargão dos consultores: qual é o driver de um alpinista? O que o motiva e o leva a fazer uma tentativa dessa magnitude?

Em primeiro lugar, gostaria de salientar que o Vitor certamente não entrou "numa roubada" - como dizemos popularmente. Como alpinista experiente que era - já tinha escalado o Everest, com o uso de oxigênio, em junho de 2005, o Aconcágua em duas oportunidades anteriores, além de outros feitos de monta - sua tentativa não carecia de um poder de decisão e de racionalidade. Obviamente ele não se atirou inocentemente num jogo aleatório onde, por sorte e exclusivamente por ela, ele conseguiria seu feito. Estou convencido que esportistas e atletas deste nível tomam decisões baseadas na mais pura capacidade analítica que lhes está disponível naquele momento e ambiente que, sabemos, é difícil e estressante. A dificuldade e o estresse fazem parte do jogo que ele estava lá para jogar e ele deve ter se preparado bem para isso.
Perdoem-me pela comparação simplista, mas analisemos como se bate um pênalti em final de Copa do Mundo. A cobrança pode ser um ato simples e ter sido muito praticada, mas o momento, o ambiente e o stress da situação podem fazer toda a diferença - principalmente se o jogador não tiver estrutura para tal. Mas, nesta hora, um alpinista com a qualificação do Vitor está numa condição muito diferenciada: apesar das dificuldades e do estresse, ele sabe medir seus riscos e suas chances. Quando se lançou para os últimos quinhentos e cinqüenta metros, após o acampamento 3, foi por que ele tinha segurança de sua decisão.

Na natação, em particular na Travessia do Canal da Mancha, o nadador leva consigo uma consciência extra - um grilo falante, se o Pinocchio me permite a analogia. Trata-se do técnico que o acompanha no barco, prepara e fornece a alimentação, dá instruções técnicas, compartilha emoções humanas, transmite segurança ao nadador e até pensa por ele, se necessário. O técnico está desvinculado dos principais fatores estressantes de uma travessia desse porte - o esforço físico incomensurável e o frio penetrante da água - e, por essa razão, tem melhores condições de tomar decisões importantes como, por exemplo, abortar uma tentativa de travessia se perceber que há algum risco de vida ao nadador.

Analogamente, um alpinista está em contato com seus companheiros em outras altitudes e, através deles, deve buscar oxigenar sua racionalidade para fundamentar suas decisões de modo irrefutável. Assim indicou o relato desta expedição, nas últimas palavras ao telefone satelital que Vitor usara, minutos antes de sua arrancada final:
"Vou tomar muito cuidado. O clima está muito favorável. Então boa sorte para todos nós!"

O ponto que muito se discute aqui é a reação da opinião pública a respeito da tragédia. Já ouvi muita gente dizendo que aquele foi um ato de egoísmo e que o Vitor não podia ter se arriscado a tal nível, haja vista que ele deixou mulher e dois filhos pequenos - um de dois anos e outro de apenas sete meses. Neste ponto delicado, as opiniões acabam por apresentar um teor emocional muito forte:
- Os filhos nunca conhecerão ou se lembrarão do pai - dizem alguns.
- A tristeza de ter um pai enterrado numa montanha gelada é muito dura - dizem outros.
Ou ainda uma muito cruel:
- Agora a mãe está sozinha para criar e educar essas crianças, enquanto ele só se divertia...

São declarações contundentes e verdadeiras - talvez exageradamente emocionadas pelo momento da tragédia - mas que se esquecem da real grandeza do ser humano e de seus feitos. O Vitor não faleceu em vão. Ele faz parte de um grande movimento evolucionista humanitário ao qual se devem todos os grandes avanços. Ele é parte de uma engrenagem maior, que é a determinação obstinada dos seres humanos - nunca ignorante ou irresponsável - que, para dar alguns passos adiante, por vezes tem que retornar um.

É mais ou menos como diz o ditado: "No mundo há dois tipos de pessoas: as acomodadas, que se adaptam ao mundo e as inconformadas, que buscam que o mundo se adapte a elas. Toda a evolução da humanidade se deve a esta segunda categoria."

O Vitor está para o alpinismo assim como a Renata Agondi está para a Travessia do Canal ou como a Apolo 1 está para o programa espacial. São momentos absolutamente tristes e trágicos por seus conteúdos, mas que nos ensinam lições. Seus valores ficam como correção de rumo para os que vêm depois deles.

Como me disse o Secretário Honorário da Federação dos Nadadores e Pilotos do Canal da Mancha, Michael Oram, dias antes de minha Travessia, em 2003:
"A Renata foi um divisor de águas na história das Travessias do Canal da Mancha. Elas nunca mais serão conduzidas da mesma forma."
Ele assim se pronunciou por que, de fato, medidas corretivas concretas foram tomadas que aumentaram a segurança da prova aquática. No caso do Vitor no Everest, esperamos que, gradualmente, se possa retirar alguma conclusão lógica que evite - ou minimize - que se incorra novamente em tragédias semelhantes.

Sua esposa, Marina Soler, entendia muito bem o que sua paixão pelo alpinismo significava. Sua declaração à imprensa foi de uma fortaleza admirável:
"- O número de conquistas dele supera muito esta tragédia."
Parece que, quem convive com gente determinada por muito tempo, acaba por entender uma parcela dos sentimentos que estão por trás de uma conquista do homem junto à natureza. A Marina entendeu. Captou a mensagem de vida do Vitor e a transmitiu em alto e bom tom a todos nós. Mensagem de um mundo melhor, mais evoluído, com gente arrojada e sem medo de viver. Ampliando os horizontes do homem.

Que sua esposa e filhos tenham força para superar este momento e continuar nos agraciando com as lições e exemplos do pai. Vitor é um herói brasileiro, não um aventureiro.
Ele chegou o mais perto que um homem, em Terra, poderia chegar do céu.
Que Deus o tenha conSigo por lá.

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© - Percival Milani